AS DUAS MORTES DE MARIELLE FRANCO

AS DUAS MORTES DE MARIELLE FRANCO

- Autoria do escritor Ricardo Reys (17/03/2018).
- Os artigos publicados por colaboradores não necessariamente traduzem a opinião do Grupo Troféu, cabendo aqui o propósito único de estimular a parceria da associação com os seus associados.


AS DUAS MORTES DE MARIELLE FRANCO

Reprodução: PSOL
Ser escritor, um ofício onde a expressividade é obrigatória, e, ao mesmo tempo, ter a ciência de que cada um deva ter suas próprias ideologias - e respeitar a dos demais - é um contrassenso intrigante. Já o era antes, em temas de relevância social diversos. O é, numa muito menor escala, em demais aspectos do entretenimento e gostos particulares, como esporte, literatura, e cinema, por exemplo. No entanto, neste atual momento de intensa polarização política, tal contraditória relação atingiu o ápice quando em assuntos diretamente relacionados aos estudos sociais, administração pública e, sobretudo, ao nosso futuro enquanto sociedade.

Justamente por isso, também nunca fui de excluir dos meus círculos sociais A ou B por pensamentos distintos. Penso, isto sim, que a argumentação de ideias é o caminho necessário do crescimento. Embora seja alguém de esquerda, reconheço que eventuais pensamentos nascidos da direita possam, sim, ser aproveitados, por que não? Mais ainda; que o refutar do diálogo e o barreirismo aos insatisfeitos, acabam por levar a infelizes fenômenos político-sociais como a eleição de Trump nos EUA, e ao golpe de estado que vitimizou - e ainda vitimiza - o Brasil.

Sempre acreditei que a conciliação, mais até do que a atual democracia, é sim o caminho mais eficiente em prol da correta condução da governança e governabilidade rumo ao melhor geral. Afinal, uma oposição agressiva tende a nascer de uma forma muito mais enfática através de um menor número de votos do que da parceria administrativa e cultural, pura e simples. Parceria partidária é outra história. Danosa e ineficaz, igualmente vítima de um modus operandi político datado e incapaz de conceber resultados a longo prazo. ...É um pensamento fantasioso, admito. Mas que, pelo menos como ideal, pode servir de norteador em qualquer esfera a ser administrada - desde grupos informais até grandes nações.

Mas um pouco de mim - e, bem da verdade, deste pensamento conciliador - morreu com Marielle e Anderson na quarta-feira à noite. Saindo de um evento na Casa das Pretas, ali na Lapa, a vereadora do PSOL, seu motorista, e a assessora, prosseguiam pelo Estácio, até o carro em que estavam ser alvejado pela saraivada de tiros. Quatro em Marielle. Três em Anderson. Felizmente nenhum na assessora. Os criminosos fugiram sem levar nada - talvez, cientes de que, entre dificultar as investigações simulando um assalto, ou intimidar a população evidenciando a execução, seria mais eficaz optar pela segunda opção.

Marielle nasceu na maré. Anderson em Inhaúma. Marielle era socióloga, com mestrado em administração pública. Anderson, mecânico, inclusive começaria em breve um novo emprego como mecânico de aeronaves, mesma profissão do pai, já falecido. Marielle foi relatora da Comissão da Intervenção Militar na câmara. Recentemente começou a denunciar os excessos em Acari. Anderson trabalhava com ela.

Duas mortes, de duas pessoas que optaram por atuar em prol de desfavorecido, levadas a cabo por assassinos da situação - assassinos que preferem manter este distópico status quo onde o bandido negro, pobre e favelado, é também o mais cômodo alvo.

Confesso que, quando ciente do crime, não esperava tamanho pessimismo com o que se desenhava nos círculos sociais virtuais e não-virtuais na cidade e no país. De certo modo, tinha um resquício de fé na sociedade brasileira. Até acreditava que, tal crime, poderia angariar simpatia à esquerda, afinal e infelizmente, são mártires que corroboram e esclarecem ideias e ideais. Triste engano. No nosso tempo e onde vivemos, até mártires têm sua morte descreditada. Logo, tive ciência de que Marielle morreu duas vezes.

Foram minutos depois do crime cruel que começaram a aparecer, seja no Facebook, como no Instagram, e, obviamente, nos comentários do G1, tal qual em outros portais, as primeiras manifestações de descrédito e ofensa ao acontecimento. Pensamentos do tipo “morreu assassinada por quem ela defendia”, “esquerdistas agora vão querer o fim da intervenção”, “pronto, vão começar a usar politicamente...”... até outros mais, mais agressivos, mais incisivos, mais cruéis... Nem a mensagem de luto na Casa das Pretas foi poupada, assim violentamente rasgada da porta.

É. No nosso país e o no nosso tempo, tiveram a proeza de matar Marielle duas vezes.

Desta vez, um assassino mais estúpido, enérgico e danoso se apresentou. Um, que apesar de ter acesso à informação para, ao menos aprender a coexistir com pensamentos diferentes, insiste em limitar sua leitura à Veja e se resignar como leviano espectador do Jornal Nacional. Um, que jamais se indignaria com um helicóptero abarrotado de cocaína, ou com a possibilidade de um político assassinar o próprio primo, mas que defende a prisão de um artista que se despe em prol da arte. Um assassino que se diverte praticando bullying com aqueles de pensamento diferentes do seu. Que se infiltra em manifestações de cunho contrário ao que acredita, para que munido de uma câmera de celular, zombar e provocar simpatizantes de pensamentos opostos.

É de fato, um assassino mais burro este - e acomodado também. Que apoia MBL e outros movimentos extremistas, compartilhando publicação de ataque à Paraíso do Tuiutí (aquela do vampirão), uma vez que ela somente contratou três pessoas em 2017 e, nesta lógica, não pode protestar contra o fim da CLT. Mas, estúpido como é, se esquece de que, como associação cultural, sua maior forma de contratação é a sociedade de fato. Um assassino, que também compartilha o vídeo do enérgico Diego Rox, onde o mesmo critica com unhas e dentes o manifesto de Stalin, onde, através dos seus dez pontos de destaque que vão desde a libertinagem sexual das crianças até o confisco das armas de fogo de todo o povo, supostamente promove a verdadeira faceta do Comunismo. Porém, acomodado como é, este assassino não se deu ao trabalho de pesquisar que, tal manifesto, na verdade, foi invenção creditada à publicação britânica, New World News, e popularizada pela Associação Americana de Rifles em 1960, no auge da Guerra Fria.

É fato que, até o presente momento, não foi comprovada a motivação política do crime. Porém, na distante hipótese de Marielle ter sido morta pelo contrário, sua segunda morte, esta deflagrada por estes débeis, acomodados e manipulados assassinos, tornaram o conjunto da obra um crime político - de fato.

Não, a morte de policiais não deve ser esquecida. Não. As centenas de crimes realizados na nossa cidade - e no país - não são motivo de indiferença - nem deixarão de ser. Porém, crimes como o de Marielle e Anderson e, bem da verdade, da juíza Patricia Acioli, convergem numa outra categoria: onde a vítima não é a única a ser assassinada, mas sim, o seu, o meu, o nosso direito de pensarmos, agirmos e coexistirmos na forma mais cívica, democrática e saudável possível. Em suma, são crimes em que um pouco de todos nós também é morto.

Graças a estes assassinos post-mortem, não somente política e o cadáver de Marielle se confundem. Como também, fazem corroborar que o Brasil, hoje, muito provavelmente, é o pior lugar do mundo cívico para se viver - simplesmente por que, pouco a pouco, deixa de assim o ser. Nosso país, por culpa da sua linha de pensamento de direita, assim cada vez mais extremista, cada vez mais estupidamente reacionário, banaliza qualquer pensamento em prol do próximo, qualquer política coletiva, qualquer noção de civilidade..., onde, na visão míopica, ou melhor, caolha, direitos humanos viram sinônimo de proteção a bandido, assistencialismo se torna uma agressão direta à meritocracia e o próximo, forçadamente reduzido a uma pura sombra da nossa consciência. E nessa consciência coletiva assassina, todo o oposto deve ser combatido.

Em entrevista ao El País, publicada no dia 05 de maio, Pepe Mujica foi enfático. “A corrupção mata a esquerda, é inexplicável isso no Brasil”. Tão inexplicável que agora é o povo que aperta o gatilho...

Mas há esperança. Sempre há...

Nesta sexta, a mensagem de luto na Casa das Pretas foi colada. Na quinta-feira, milhares foram as ruas, chorando, lamentando, prosseguindo... Nestes dias, em meio ao choro do Rio de Janeiro, Marielle sorrir.

Sim, pois por mais que doa, por mais que sangre, a esquerda..., não somente ela, mas a cidadania...

A de resistir no Brasil.

Reprodução: Itareba.Net

Ricardo Jardim Reys
17/03/2018